quinta-feira, janeiro 31

Para as mulheres...


A psicanalista Julia Kristeva mergulha no tempo para compreender a mulher e o amor de hoje e traz à tona um olhar em que a esperança ganha outros contornos.


Texto Fernando Eichenberg, de Paris


O terceiro milênio será um século feminino.


A guerra dos sexos continua, mas é preciso inventar um novo mundo amoroso.

É ao revisar e compreender o passado, em uma espécie de arqueologia da harmonia, que poderemos alcançar uma nova lucidez e serenidade amorosas. O amor, uma ilusão necessária, não é eterno, mas a crença no amor, sim. Essas são algumas das opiniões da psicanalista, filósofa, lingüista e escritora de renome internacional Julia Kristeva, nascida na Bulgária em 1941 e radicada na França desde 1965. No Brasil, foi lançado recentemente o último e terceiro volume de sua trilogia O Gênio Feminino (ed. Rocco), saga em que mergulha na trajetória de três mulheres: a filósofa Hannah Arendt, a psicanalista Melanie Klein e a escritora Colette. Na França, acaba de sair Seule, une Femme (Só, uma Mulher, ed. Bord de l’Eau), uma coletânea de entrevistas, artigos e conferências sobre a questão do feminino no mundo contemporâneo. Em Paris, Julia Kristeva conversou com BONS FLUIDOS sobre temas em torno da mulher e do amor, aos quais dedica parte de suas preocupações e estudos. BONS FLUIDOS -


Por que a senhora diz que o terceiro milênio será um século feminino?


JULIA KRISTEVA - É uma boutade (piada). Na minha ótica, a de que esse já é e será um século feminino, isso quer dizer que todo o combate das mulheres pela emancipação que ocorreu no século 20 vai adotar novos contornos. O primeiro e talvez o mais visível será o fato de que as mulheres vão entrar maciçamente na política e vão tentar mudar a essência dela. Isso será difícil, e essa mudança poderá seguir diferentes caminhos. Elas podem ser simplesmente governantes de uma ordem mundial que banaliza a humanidade, nos conduz a um tipo de automatização da espécie e pronto. Mas podem ser também as “boas mães”, que talvez acrescentem à dimensão política o cuidado. Uma mãe é alguém que atenta ao que seu filho tem de mais específico e ao mesmo tempo tenta adaptá-lo à comunidade. Podemos esperar que a política, ao se apoiar nas mães, evite a banalização, os confrontos religiosos e vá na direção dessa partilha de singularidades, que é a verdadeira civilização. Eu me dou conta de que formulo uma utopia, mas já será algo interessante se as mulheres de alguma forma representarem essa utopia.


BF: A senhora fala também em uma nova lógica entre os sexos baseada nessa emancipação feminina. Do que se trata?


JK: Há outro aspecto da mensagem que vem do continente feminino em nosso século. Me parece que toda a emancipação das mulheres até agora se deu em uma lógica binária, as mulheres e os homens e, em certos momentos, as mulheres contra os homens. Sabemos que todos os conflitos se encerram no binarismo: o burguês e o proletário, o judeu e o cristão, o branco e o negro etc. Acredito que com certa maturação do movimento feminino e com os diferentes papéis culturais da mulher – mãe, amante, escritora, política –, se pode imaginar, esperar, que a era da diferença sexual suceda a outra que não negue a diferença, mas que também não se restrinja a isso. Homem e mulher serão sempre uma dualidade. Por outro lado, defendo que a entrada da mulher na cultura e na política nos fará compreender o quanto cada um é excepcional.


BF: Esse é o gênio feminino?

JK: Há uma singularidade que cada mulher começa a reivindicar. Em outras palavras, o gênio não é apenas algo de grandes homens excepcionais, mas toda mulher na sua existência, na sua sexualidade, em seu cuidado, no refinamento de sua pessoa e do filho que deseja é amorosa da singularidade. Isso pode ser uma mensagem para sair do dualismo, do confronto. BF: A senhora diz que a guerra dos sexos continua, mas que é preciso inventar um novo "mundo amoroso". JK: Eu penso que a guerra dos sexos sempre existiu e, segundo as épocas e os impactos dessa ou daquela religião, foi mais ou menos camuflada ou harmonizada para que fosse feita a reprodução e as pessoas pudessem trabalhar juntas para alimentar as crianças. Hoje, com a liberdade dos indivíduos, essa incompatibilidade ficou ainda mais evidente. As feministas foram muito criticadas por terem conduzido a essa guerra dos sexos. Compreendo essa crítica porque muitas vezes as pessoas que se engajaram nessa visão das coisas se machucaram, no sentido de que casais e famílias foram brutalmente destruídos. Em nome da liberdade, se exerceram muitas crueldades. O que não quer dizer que não havia algo de verdadeiro nisso tudo. É a vantagem do feminismo, mas uma vantagem de que se pode falar com mais precauçãoem um romance ou em um divã. O que o feminismo não soube elaborar foram novas formas de sublimação desses conflitos. Sim, nós sabemos que os homens e as mulheres, para sua liberdade, gozam de formas diferentes, têm necessidade de mais ou menos objetos eróticos, têm relações diferentes com as crianças, com a morte, o tempo etc. Mas, uma vez que se diz isso, como fazer para viver junto?


BF: Há alguma resposta pronta?


JK: Não tenho nenhuma, mas arrisco que uma das saídas passa pelo estudo de formas antigas de harmonia. Tentemos compreender como se viveu antes de nós, não repetindo, mas analisando, elucidando, criticando. À medida que essa compreensão se afinar, que novas formas de liberdade mostrarem seus avanços e também seus limites, encontraremos outras soluções. O feminismo está bloqueado nisso, vivendo um refluxo do passado que se parece com um conformismo. Em outras palavras, é um retorno ao antigo, como se dissesse: a liberdade é perigosa, vamos voltar ao casal. Acontece que o casal não é mais o mesmo quando se têm os filmes de hoje, o hardsex, as sexshops. Novas formas de coexistência pacífica são buscadas, mas não são suficientemente explicitadas. Não precisamos de doutrina. Talvez na arte moderna, no cinema, na dança, na música, essas coisas se encaminhem suavemente, mas é importante também que possamos formulá-las. Falo de retorno ao passado não para fazer igual, mas para compreender.


BF: Como viver o amor sem cair em seu lado doentio?


JK: Se você olhar as novelas de TV, só se fala de amor. Ele está onipresente, como se fosse uma religião. Diria-se que é um tipo de substituto de nossa religião católica – falo nossa porque ela é dominante no mundo mais poderoso economicamente. Pois bem, hoje o amor é cultuado quase como se cultua Deus. E esse sentimento muitas vezes toma a forma de um erotismo que não é pensado, é fisiológico. Esse Deusamor pode também se transformar em algo ruim, em conflito, que se tenta curar com Prozac. Freud fundou a psicanálise porque ele colocou o amor no divã, tentando ver de onde ele vem, quais são as crises, as dependências em relação à biologia. Por vezes, refletindo sobre esse fenômeno e sobre textos modernos que falam de experiência amorosa, eu digo que o amor é uma armadilha e me pergunto se podemos nos curar da doença do amor.


BF: O amor é uma ilusão?


JK: A ilusão é necessária, mas é preciso saber que tem restrições. Podemos encontrar formas diferentes para essa ilusão, que são criatividades. Uma vez que a relação com alguém terminou, podese recomeçar com outra pessoa. Quando cumpri meu trajeto como mãe, recomeço com meus netos. Ou posso investir no trabalho com meus estudantes, transmitir um conhecimento ou ainda me dedicar ao livro que escrevo, ao trabalho humanitário que pratico. São as diferentes formas de deslocamento da necessidade amorosa que nos fazem viver. Mas acreditar no amor exclusivamente como um tipo de culto do casal e da procriação, isso, sim, é que se torna uma doença e cria conflitos.


BF: Como manter a “lucidez amorosa de que você fala?


JK: Em um livro que escrevi há muitos anos, A História do Amor, mostro que a idéia do amor aparece em um certo momento na história da humanidade e evolui segundo as civilizações. A paixão, com o amor absoluto, o amor paixão etc., ocupa uma parte importante da civilização ocidental, entre o amor cortês e o romântico. A partir daí, sabemos também que a paixão não é o todo do amor. Há outras formas de gozo. Pode-se gozar na traição, em Otelo, de Shakespeare, por exemplo, ou com Don Juan, de Mozart, com o abandono das mulheres e a acumulação de diferentes objetos. Pode-se gozar como o compositor que goza com a música. Não há razão de dizer que um é melhor do que o outro. Na pluralidade e singularidade dos seres humanos, cada um encontrará o seu modo de prazer, de felicidade particular em lugar e configuração específica. A serenidade não é uma espécie de asfixiamento da paixão. Ao contrário, pode ser um tipo de confiança na possibilidade de criar laços, de poder transmitir sua alegria, um tipo de abertura e de partilha. Mas que, evidentemente, não tem a chama, a violência.


BF: Como é possível, então, encontrar a harmonia?


JK: Contrariamente a palavras como globalização e banalização, que descrevem um aspecto do mundo moderno, creio que nunca fomos tão diferentes. Todo o mundo não vive no mesmo tempo. A aceitação ou a crítica que temos em relação ao que vivemos faz com que a humanidade nunca tenha sido tão diversificada. Eu aposto nisso, dizendo que, se em certas condições econômicas e políticas um indivíduo tem suficiente espaço e tempo para refletir sobre a sua sexualidade, sua relação com o outro, esse indivíduo certamente vai descobrir sua bissexualidade da alma. E a partir da descoberta de minha bissexualidade posso conceber que a de meu parceiro do outro sexo também existe, mas de outra forma. Porque há duas feminilidades e duas masculinidades.


BF: A senhora pode falar mais a respeito?


JK: Há algo de verdadeiro no que dizem as feministas: elas trouxeram à superfície a guerra dos sexos. Desmistificaram a relação idílica homem/mulher. Isso é positivo. Não temos os mesmos interesses, há um conflito que deve ser superado. Mas as feministas não seguiram adiante. Elas desvendaram o conflito e atiraram os dois sexos um contra o outro. É preciso todo um trabalho pessoal do homem e da mulher que passa pelo reconhecimento da bissexualidade psíquica de cada um, da minha parte masculina e da parte feminina de meu companheiro. Somos quatro nessa relação. É toda uma alquimia que deve ser harmonizada. Baseado nisso, ajustamentos são possíveis, mas que supõem também a capacidade de cada um de se questionar, de não se tomar por um absoluto e tentar se harmonizar com o outro.


BF: Para a senhora, ser otimista é fazer o luto do pessimismo?


JK: Exatamente. Digo também que a felicidade é o luto da infelicidade. Eu ajo assim. Creio que é uma moral que leva em conta a dificuldade de viver. Outra seria um tipo de ingenuidade que não tem lugar no mundo moderno, com tudo o que conhecemos no plano pessoal e da história. Freud foi bastante bíblico. Ele faz sempre pensar no profeta que diz “a paz, a paz, não há paz”. É sempre um estado de guerra no fundo da humanidade. Mas é preciso sabê-lo e, enquanto estamos nessa terra, fazer o máximo não para negar, mas fazer de tudo para viver com isso e sublimar. Daí a serenidade. Mas esse é um projeto a longo prazo.


BF: A febre pelos antidepressivos em detrimento da psicanálise passou?


JK: Acho que a química fez muitos progressos, e há situações em que ela é indispensável. Por exemplo, nas depressões muito pesadas se fazem cada vez mais curas mistas, se receitam medicamentos e se realiza também um trabalho psíquico. Não sei se a análise está de volta. Espero que sim. Há sinais de que se caminha nessa direção. Há também uma espécie de rapidez do mundo moderno que faz com que muitas pessoas hesitem em fazer um trabalho de longo prazo sobre sua memória, seu presente e seu futuro. Sobre essa situação, é preciso dizer que as ideologias providenciais, marxismo e outras, desabaram e o que substitui as necessidades psíquicas são as religiões. Os indivíduos se vêem entre um Prozac e uma crença. A psicanálise tem de mostrar que a necessidade de crer é indispensável para a construção do espaço psíquico. O amor faz parte. Eu te amo porque creio em ti. E não se pode absolutizar essa necessidade de crer, senão quebramos a cara. A necessidade de crer é uma necessidade amorosa.


BF: E a fé?


JK: A fé religiosa é uma espécie de extrapolação da necessidade de crer e de amar. O conteúdo dessa necessidade pode ser explorado pelas religiões. Pode ser útil porque nos mantém na esperança. Mas, se me questiono, seu conteúdo não se sustenta. Porém minha necessidade de crer perdura e a reencontro no amor. É essa perenidade da necessidade de crer que Freud percebeu e que permite aos analistas dizer “isso é o amor fundamental”, “isso é a necessidade que é preciso abrigar”. Talvez seja uma ilusão, mas ela é constitutiva de nosso aparelho psíquico.


BF: O amor não é perene, mas, sim, a crença no amor.


JK: Isso mesmo. É a necessidade de estar amoroso, de manter um ideal que me ultrapassa e também transcende o tempo.

Um comentário:

Elvira Carvalho disse...

Fiquei pensando nessa entrevista.
Tanta coisa que vemos no dia a dia e que às vezes nem nos apercebemos.
Um abraço
À margem; E como está bonita a sua princesinha.